Por Luciano Trigo na Gazeta do Povo
Desde a redemocratização, oito presidentes tomaram posse no Brasil: José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro (Tancredo Neves, eleito indiretamente em 1985, morreu antes de assumir). Três destes oito eram vices que herdaram o cargo: Sarney, Itamar e Temer.
Três em oito é um número assombroso. Por uma conspiração de fatores que não cabe analisar aqui, ser eleito vice-presidente no Brasil é quase colocar um pezinho na presidência. Ainda assim, os eleitores não costumam prestar muita atenção no candidato a vice da chapa em que votam. A História recente e a estatística demonstram que deveriam.
Embora formalmente, no Brasil, o vice-presidente tenha poucas funções e zero poder – diferentemente, por exemplo, dos Estados Unidos, onde cabem ao vice diversas responsabilidades, inclusive a de presidir o Senado – ele tem sempre chances palpáveis de se tornar um ator importante na tragicomédia da política, sobretudo em momentos de crise. E, por diferentes motivos, pode até amealhar o papel principal da peça.
A chapa Tancredo Neves-José Sarney nasceu de uma crise no PDS (antiga ARENA), por sua vez ancestral do PFL e do atual Democratas. Sarney e outros políticos formaram a dissidente Frente Liberal quando Paulo Maluf venceu a disputa interna do seu partido para ser indicado candidato à presidência, na última eleição via Colégio Eleitoral.
Daí veio o acordo com o PMDB de Tancredo Neves, que era apontado como o candidato da conciliação. A chapa Tancredo-Sarney foi eleita com folga no Colégio Eleitoral: 480 votos x 180 (e 26 abstenções, aliás quase todas do PT). Mas veio a tragédia, e o destino quis que, após 21 anos de ditadura militar, o primeiro presidente do país redemocratizado fosse… um vice.
O governo de José Sarney foi marcado por crises econômicas e planos fracassados, como o Plano Cruzado, que congelou preços e exortou os brasileiros a se tornarem “fiscais do Sarney”, denunciando comerciantes que não respeitassem as tabelas. Não tinha como dar certo, é claro – embora a mesma receita continue sendo adotada por governos populistas na América Latina, sempre com resultados desastrosos, como vemos hoje na Argentina.
A consequência de José Sarney foi a eleição de Fernando Collor – mais uma vez, em uma chapa montada para acomodar interesses discrepantes. Seu vice foi Itamar Franco, um político mineiro que criticava publicamente vários pontos da agenda do presidente, incluindo o programa de privatizações. Denúncias de corrupção e o fracasso do plano Collor levaram ao impeachment do presidente. Sobrou de novo para o vice.
Os eleitores não costumam prestar muita atenção no candidato a vice. A História recente e a estatística demonstram que deveriam
Assumindo o cargo em 1992, Itamar Franco inaugurou a “República do Pão de Queijo” (já que sua equipe era majoritariamente formada por mineiros). Sem vocação para o poder, Itamar se meteu em alguns episódios folclóricos (como aquele no camarote do carnaval carioca) e teve um desempenho modesto, mas merece o crédito de ter bancado o Plano Real, que finalmente deu cabo da inflação então pandêmica no país.
(Uma curiosidade: ainda que por motivos diferentes, na votação do Plano Real no Congresso Nacional, em julho de 1994, tanto o então deputado Jair Bolsonaro quanto os deputados do PT votaram contra.)
Fernando Henrique (cujo vice foi Marco Maciel) e Lula (cujo vice foi José Alencar) concluíram dois mandatos cada um, então fogem do escopo deste artigo. Mas com Dilma Rousseff voltou a aparecer a maldição do vice, com uma peculiaridade: Michel Temer, diferentemente de Sarney e Itamar, tinha apetite e vocação para o poder.
O desastre econômico, os escândalos, as pedaladas e uma inédita pressão das ruas criaram as condições jurídicas e políticas para o impeachment. Dilma caiu, e Temer assumiu: foi, talvez, o único reserva que entrou em campo feliz e realizado.
No início de seu curto governo, Michel Temer implementou reformas importantes e deu início à recuperação da economia. Mas, quando parecia que o Brasil tinha um encontro marcado com a normalidade, dois episódios quebraram as pernas do presidente: o estranho caso das gravações dos irmãos Joesley e Wesley Batista – que ensejaram uma tentativa coordenada e clara de apeá-lo do poder (aka golpe), tema aliás tratado neste artigo – e, na sequência, a greve dos caminhoneiros que paralisou o país.
Resultado dessa sabotagem: o final ruim do governo Temer, após um começo promissor, levou ao acirramento ainda maior da divisão dos brasileiros e, finalmene, à eleição de Bolsonaro em 2018 – que foi, de certa forma, uma consequência do “Primeiramente, fora Temer”.
O ressentimento é um mau conselheiro: os inconformados com Temer acabaram contribuindo para a eleição de Bolsonaro (e, em vez de amadurecer, trocaram o “Fora Temer” pelo “Ninguém solta a mão de ninguém”).
Causas sempre têm consequências, e as consequências costumam vir depois. Sarney, Itamar e Temer foram consequências inesperadas – mas não imprevisíveis, já que estavam contempladas no nosso sistema – das chapas montadas para a eleição.
No Brasil, deveria entrar sempre no cálculo do eleitor a possibilidade de o vice assumir o cargo, para evitar frustrações futuras
Resumo da ópera: no Brasil, quem vota no candidato titular deve estar sempre ciente de que pode acabar elegendo, inadvertidamente, o reserva. E não vale alegar depois que não votou no vice, porque votou sim: o eleitor vota na chapa, que inclui o candidato a presidente e o candidato a vice. A urna eletrônica mostra as fotos dos dois, preste bastante atenção.
As pessoas que foram às ruas protestar contra o impeachment de Dilma foram as mesmas que votaram em Temer para vice-presidente, vale lembrar. Por outro lado, se Temer, como Sarney e Itamar, assumiu de forma legítima, isso não muda o fato de que, se fossem eles os candidatos a presidente, jamais teriam chegado ao cargo.
Por tudo isso, no Brasil deveria entrar sempre no cálculo do eleitor a possibilidade de o vice um dia tomar posse, para evitar frustrações futuras – especialmente quando o titular e o reserva da chapa representam interesses, agendas, ideologias e campos políticos diferentes, como aconteceu nos três casos citados acima.
Quem assistiu à série “House of Cards” sabe como pode ser inconveniente (ou perigoso) um vice-presidente que almeja o poder: depois que consegue o cargo de vice, o ambicioso Frank Underwood se faz de leal ao presidente, mas tudo que ele quer é sentar na cadeira de Garrett Walker – e consegue, já no final da segunda temporada.Garrett Walker e Frank Underwood, personagens de “House of Cards”
Muito objetivamente, a regra é clara: quem votar em Jair Bolsonaro na próxima eleição estará assumindo que, em caso de eventual vacância ou impedimento do presidente, o herdeiro legítimo do cargo será o general Braga Netto. Da mesma forma, quem votar em Lula estará assumindo que, em caso de eventual vacância ou impedimento do presidente, o herdeiro legítimo do cargo será Geraldo Alckmin.
Não se trata aqui de uma opinião, mas de uma premissa do jogo eleitoral e do sistema democrático. Por óbvio, a mesma premissa se aplica a quem votar em Ciro Gomes, Simone Tebet ou qualquer outro candidato.
Em um país onde até o passado é imprevisível, não dá para descartar a hipótese de mais um mandato inconcluso e, consequentemente, de mais um vice alçado ao poder. Ainda mais em meio a um ambiente radicalmente polarizado e uma conjuntura marcada por incertezas econômicas globais, dois fatores que criam um cenário mais do que favorável a crises.
Sempre no terreno das hipóteses, quais seriam as consequências de uma eventual quarta ascensão ao poder do reserva da chapa? Todos estariam de acordo em respeitar as regras do jogo, por maior que fosse a frustração? Teríamos uma transição pacífica ou um novo ciclo de instabilidade?
Os eleitores estão pensando nisso? Deveriam.