Em março de 2019, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) abriu o inquérito das fake news, inaugurou um dos capítulos mais controversos de sua história, tornando-se vítima, acusador e julgador em um mesmo caso. Uma escalada de decisões arbitrárias tomadas desde então pelo relator desse inquérito, o ministro Alexandre de Moraes, atingiu seu ápice na terça-feira (23), com mandados de busca e apreensão contra empresários que não fizeram mais do que emitir opiniões em um grupo privado de WhatsApp.
As decisões de Moraes chamam a atenção por um paradoxo: evocando a necessidade de defesa dos valores democráticos, o ministro ataca um dos principais pilares do Estado Democrático de Direito: a liberdade de expressão.
O ineditismo dessa última decisão foi apontado em editorial da Gazeta do Povo da terça-feira: trata-se de um caso evidente de mera manifestação de opinião, em que não houve incitação ou apologia a um golpe de Estado; e, ainda que isso tivesse ocorrido, a conversa não envolvia pessoas com capacidade concreta de cometer um golpe.
Para o advogado Adriano Soares da Costa, especialista em Direito Eleitoral, a decisão de Moraes é ainda mais antidemocrática por intimidar um grupo político específico em seu direito à livre expressão no meio do período eleitoral.
“Houve algum ato material, nestas conversas, preparatório de golpe de Estado? Houve planos de golpe, de atos terroristas concretos? São pessoas se manifestando em um grupo privado, no meio privado digital, entre eles próprios, sem fazer publicidade do que estão dizendo, sem fazer proselitismo, apenas conversando pelos meios próprios que a tecnologia permite. O Estado vem e se sente no direito, com uma medida liminar acautelatória, de bloquear as contas dessas pessoas, de constrangê-las publicamente e de intimidar não só a elas pessoalmente, mas a todo um grupo da sociedade, e no meio de um processo eleitoral”, comenta o jurista.
Para Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela USP, a decisão de Moraes abala um fundamento do Estado Democrático de Direito. “No Estado de Direito, as pessoas não perdem direitos a menos que tenham desrespeitado a lei. Isso é Estado de Direito. O resto é decorrência dessa visão. O que o Alexandre de Moraes está fazendo é justamente o oposto. Ele está retirando direitos dessas pessoas: seu direito à privacidade e à intimidade, seu direito à liberdade de expressão, sem que elas tenham cometido qualquer crime. É gravíssimo o que está acontecendo.”
Soares da Costa recorda que muitos membros das associações jurídicas que protocolaram a notícia-crime contra os empresários assinaram o manifesto sobre democracia da USP, e lamenta que elas “se prestem a fazer o papel de ser esbirros do autoritarismo”. “São associações cujos representantes assinaram o Manifesto pela Democracia, o que mostra uma grande hipocrisia, porque democracia se vive na prática, e não com palavras soltas ao vento”, diz.
Concepção de Moraes sobre liberdade de expressão é contrária à de democracias maduras
A decisão de Moraes é a confirmação prática de uma ideia presente em seu discurso de posse, na semana passada, como novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE): a de que a democracia não pode tolerar manifestações de pensamento contra o regime democrático. Ao enumerar situações de abuso da liberdade de expressão, Moraes afirmou que essa garantia constitucional não permite ao cidadão brasileiro a propagação “de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado de Direito”.
Para Soares da Costa, essa ideia sobre liberdade de expressão é equivocada e antidemocrática. “É num regime totalitário que nós não podemos nos manifestar contra o próprio regime. E ocorre justamente o contrário nas democracias maduras. Em toda a história do constitucionalismo americano, há o direito a que inclusive aqueles que são contra a democracia possam, na democracia, se expressar”, afirma. “Qualquer pessoa pode pensar contra o regime democrático. Não fosse assim, todos os marxistas deveriam estar presos no Brasil; todos os que defendem a ditadura do proletariado deveriam estar presos no Brasil; todos os que defendem e protegem regimes como os de esquerda na América Latina deveriam estar presos no Brasil”, acrescenta.
Além disso, como afirmou o jurista em reportagem publicada na terça pela Gazeta, a decisão de Moraes é um estímulo para a existência de outras figuras infiltradas em grupos semelhantes, o que evoca o estado de vigilância da vida privada de regimes totalitários. “Estão estimulando um pouco aquilo que a Stasi fazia e que os regimes autoritários faziam. É a questão da inexistência do espaço privado. O Estado passa ter o senhorio de tudo. Isso é coisa de Coreia do Norte”, diz Soares da Costa.
Em reportagem recente da Gazeta do Povo, o especialista em liberdade de expressão Pedro Franco, mestre em história social da cultura pela PUC-Rio e em estudos interdisciplinares pela Universidade de Nova York, explicou como o discurso de Moraes se encaixa no “paradoxo da tolerância”: a ideia de que não pode haver tolerância com os intolerantes.
“As pessoas falam, usando o paradoxo da tolerância: ‘Se a gente permite que certos discursos proliferem, eles vão prejudicar a democracia. A gente tem que suprimir esses discursos antes que eles tomem força’. É paradoxal, porque esse tipo de discurso também é prejudicial à democracia. A partir do ponto em que você coloca um lado do debate como ilegítimo, você está desincentivando o debate democrático. Você está prejudicando a democracia ao fazer isso. O grande paradoxo é que, tomando as premissas do Alexandre de Moraes como verdadeiras, o discurso dele deveria ser censurado, por estar prejudicando a democracia. Teríamos que censurar tudo o que corre o risco de prejudicar a democracia. E não dá para fazer isso”, diz Franco.
Gazeta do Povo