Só existe uma coisa que um governante gastador queira mais que uma licença para gastar à vontade: a certeza de que poderá fazer isso sem a menor perspectiva de punição caso sua gastança leve o país à ruína. Ou, para usar as palavras de Lula ao editar decretos que desfiguravam o Novo Marco do Saneamento, “se isso aqui não der certo, é um fracasso de todo mundo. Se isso aqui não der certo, não tem culpado”. E o PLP 93/2023, a nova regra fiscal enviada pelo governo ao Congresso na semana passada, garante exatamente isso: uma licença para gastar – que pode não ser ilimitada, mas é bem generosa – com a garantia de que não haverá culpado se nada der certo.
Além de instituir um “piso de gastos”, garantindo que a despesa tenha aumento real (ou seja, acima da inflação) de pelo menos 0,6%, independentemente do que ocorra com o país, e estipular uma série de exceções à regra, o PLP 93 ainda faz alterações importantes em uma das “heranças benditas” do governo Fernando Henrique Cardoso: a Lei de Responsabilidade Fiscal. O artigo 7.º do projeto do novo arcabouço dispensa a União de cumprir as regras estabelecidas no artigo 9.º da LRF; em vez disso, as diretrizes específicas para o governo federal ficariam em um novo artigo da LRF, o 9.º-A, com novas diretrizes; a mais escandalosa delas está no parágrafo 6.º, que diz “O descumprimento da meta de que trata o caput [ou seja, “meta de resultado primário estabelecida no Anexo de Metas Fiscais da lei de diretrizes orçamentárias”] não configura infração a esta Lei Complementar”. O pior que poderá acontecer a um presidente da República nessas circunstâncias está no parágrafo 4.º: “Caso a meta de resultado primário não seja cumprida, o presidente da República encaminhará mensagem ao Congresso Nacional, até 31 de maio do exercício seguinte, com as razões do descumprimento e as medidas de correção”.
Projeto do arcabouço fiscal nega todo o espírito da Lei de Responsabilidade Fiscal ao afirmar que, ainda que exista uma regra, ela não tem valor algum e pode ser descumprida impunemente
Em outras palavras, a meta de resultado primário (déficit ou superávit, pouco importa) se torna não um objetivo criteriosamente traçado, que o governo tem de perseguir sob pena de ser responsabilizado por não ter feito o ajuste necessário: agora, a meta vira uma ficção, uma cartinha de boas intenções. Se não for atingida, o governo dirá apenas que não foi possível, lamentará publicamente e enviará uma cartinha prometendo tentar de novo no ano que vem com outra meta para inglês ver. Se não há mais punição, também não há estímulo para que o governante – tanto Lula quanto aqueles que vierem a sucedê-lo pelo período em que esta norma vigorar, caso aprovada – tenha o mínimo de responsabilidade para com o dinheiro tomado do contribuinte. Nessas circunstâncias, como esperar que haja qualquer resquício de confiança na capacidade brasileira de manter suas contas em ordem?
Essa garantia de impunidade que o governo Lula quer implantar por meio do arcabouço fiscal é um ataque sem precedentes à LRF. Nem mesmo Dilma Rousseff chegou a esse ponto, preferindo maquiar a contabilidade para fazer parecer que estava cumprindo a meta, ou aprovar projetos que permitiam contornar temporariamente a lei orçamentária – neste último caso, houve até chantagem institucionalizada, com um decreto que condicionava a liberação de emendas parlamentares à aprovação do “projeto salva-vidas”. Além disso, ao tentar garantir desde já que não haverá pescoços cortados em caso de descumprimento da meta, o governo admite a fragilidade daquilo que promete, já que a conta não fechará se Lula e Fernando Haddad não encontrarem várias dezenas de bilhões de reais para conseguir zerar o déficit em 2024 e ter superávits primários de 0,5% e 1% do PIB em 2025 e 2026.
O PT voltou ao poder com gana de arrasar tudo o que foi construído por seus antecessores; a Lei de Responsabilidade Fiscal, à qual o partido se opôs quando de sua tramitação no Congresso, é o mais novo alvo. O Legislativo não pode, em hipótese alguma, deixar que prospere essa mutilação de um dos grandes marcos saneadores das contas públicas. Na prática, o artigo 7.º do PLP 93 nega todo o espírito da LRF ao afirmar que, ainda que exista uma regra, ela não tem valor algum e pode ser descumprida impunemente. Tudo, inclusive o que está previsto no próprio projeto do arcabouço, perde completamente a solidez (que, a bem da verdade, já não seria muita mesmo sem a previsão da impunidade), completando de vez o trabalho de demolição fiscal que vem revertendo, aos poucos, todos os avanços que foram construídos para evitar que o país voltasse a sofrer com os efeitos da gastança sem fim.
Gazeta do Povo