Por Maria Clara Vieira / GAZETA DO POVO
Às margens do rio Dnieper, em 988, o grão-príncipe de Kiev, Vladimir (ou Volodymyr em ucraniano), convocou toda a cidade para um grande batismo. Com o objetivo de se casar com a irmã do imperador Basílio, líder do Império Bizantino, o chefe da Rus de Kiev – o grande reino que viria a se tornar a Rússia – não apenas abraçou a fé, como transformou o cristianismo na religião do Estado.
Pela cristianização do território, Vladimir seria declarado santo tanto pela Igreja Católica Romana quanto pela Igreja Ortodoxa, cuja fé se espalharia rapidamente pelo continente, a ponto de, após a invasão de Constantinopla em 1453, os russos passarem a se considerar os sucessores do império bizantino – a “terceira Roma”.
“Quando o Cristianismo chegou na atual Ucrânia, na Rússia e na Bielorrússia, foi através de emissários de Constantinopla. Como consequência dessas missões, o império acabou construindo uma diocese em Kiev. Kiev é, portanto, a cidade-mãe espiritual de todos os países eslavos orientais, ou seja, Bielorrússia, Rússia e Ucrânia”, explica o jornalista Daniel Sender, iconógrafo e especialista em cristianismo oriental.
“Ocorre que, por volta do século XIII, os mongóis, tártaros e outras tribos do Oriente invadiram todas essas terras eslavas e chegaram bem perto de Kiev. Isso fez com que o arcebispo de Kiev, que chefiava toda a igreja dessas cidades-Estado independentes – mas ainda assim, parte de uma confederação -, fugisse para Moscou, levando o arcebispado para lá”, explica Sender. Nascia, assim, o patriarcado de Moscou, hoje denominado Igreja Ortodoxa Russa.
A derrocada da União Soviética, nos anos 1980, traria novos conflitos políticos e religiosos à região: por não aceitar mais a ingerência russa em seu território, parte da Igreja Ortodoxa ligada ao patriarcado de Moscou se separou, formando o patriarcado autônomo de Kiev. Vale lembrar que, ainda que não tenha as mesmas prerrogativas que o papa, a autoridade máxima da Igreja Católica Ortodoxa é o patriarca Ecumênico, que detém a autoridade para reconhecer os diversos territórios canônicos e seus patriarcados locais.
Nomeado para o cargo em outubro de 1991, o patriarca ecumênico Bartolomeu I só reconheceria o patriarcado de Kiev em 2018, conferindo um caráter autônomo e oficial à Igreja Ortodoxa da Ucrânia. “O problema é que o patriarcado de Moscou não aceita essa decisão e entende que o território ucraniano lhe pertence”, explica Sender. “Constantinopla – o patriarcado ecumênico – afirma que nunca cedeu a Ucrânia para Moscou, mas a Rússia entende o contrário”. Em paralelo, há a Igreja Ortodoxa Ucraniana que permanece ligada ao patriarcado de Moscou, um alinhamento que o próprio Vladimir Putin, em seu anseio por reconstruir a “terceira Roma”, pode colocar a perder.
A “terceira Roma” de Putin e as batalhas religiosas na Ucrânia
Em 2014, Putin citou a história do reino medieval da Rus de Kiev ao justificar a guerra pela anexação da Crimeia, onde o príncipe Vladimir teria sido batizado e que, portanto, seria uma terra “sagrada” para a Rússia. Oito anos depois, o argumento é utilizado para “chancelar” a invasão à Ucrânia – a terra natal do Cristianismo eslavo.
”Embora o Ocidente pense no cristianismo como uma religião enfraquecida e em declínio, no Oriente ele está prosperando. Em 2019, o patriarca Kirill, chefe da Igreja Ortodoxa Russa, se gabou de que estavam construindo três igrejas por dia. No ano passado, foi inaugurada uma Catedral para as Forças Armadas, a uma hora de Moscou. As imagens religiosas se fundem com a glorificação militar. (…) Em um grande mosaico, as vitórias mais recentes – incluindo o ‘retorno da Crimeia’ de 2014 – são celebradas”, descreve o jornalista Giles Fraser.
“No centro desse renascimento pós-soviético do cristianismo está (…) Vladimir Putin. Muitas pessoas não apreciam até que ponto a invasão da Ucrânia é uma busca espiritual para ele. O Batismo de Rus é o evento fundador da formação da psique religiosa russa, a Igreja Ortodoxa Russa traça suas origens aqui. É por isso que Putin não está muito interessado em alguns distritos de tendência russa ao leste da Ucrânia. Seu objetivo, assustadoramente, é a própria Kiev”, explica o especialista.
O problema é que mesmo a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, ligada ao patriarcado de Moscou, tem ampla autonomia e é cada vez mais… ucraniana. Não à toa o bispo metropolita Onufry de Kiev comparou a guerra ao “pecado de Caim”, em referência ao personagem bíblico que assassinou o irmão. Há relatos de que, com a invasão, a Igreja da Ucrânia parou de celebrar o patriarca de Moscou em suas orações – o que pode ser prenúncio de uma nova separação.
“Independentemente da afiliação da igreja, você tem muitos novos clérigos que cresceram na Ucrânia independente”, disse Alexei Krindatch, coordenador nacional do Censo das Igrejas Cristãs Ortodoxas dos Estados Unidos, ao jornal The Independent. “Suas preferências políticas não estão necessariamente correlacionadas com as jurisdições formais de suas paróquias”, disse Krindatch, que cresceu na antiga União Soviética.
Por sua vez, o patriarca Kirill de Moscou reforçou o apoio a Putin: durante a homilia do último domingo (6), afirmou que o Ocidente estaria disposto a “organizar campanhas genocidas contra países que se recusam a sediar uma parada gay”. Uma manifestação que, conforme a análise de Fraser, vai na contramão da “imaginação secular ocidental”:
“Mostramos o quão pouco entendemos [sobre o assunto] ao pensar que um monte de sanções fará qualquer diferença. (…) ‘A Ucrânia é uma parte inalienável de nossa própria história, cultura e espaço espiritual’, disse Putin. É disso que se trata, ‘espaço espiritual – uma frase aterrorizante impregnada em mais de mil anos de história religiosa russa”.