Desde tempos imemoriais, o ser humano se vê como parte de uma narrativa maior, algo que transcende sua individualidade. Algumas culturas nos colocaram sob o olhar vigilante de deuses oniscientes, enquanto outras descreveram a realidade como um fluxo cíclico, sem início nem fim. Mas e se estivermos presos em uma peça sem dramaturgo, buscando sentido onde não há um enredo predeterminado?
A ausência de um autor para nossa existência não é apenas um problema religioso ou metafísico, mas uma questão central na história do pensamento. Se não há um escritor cósmico, o que nos resta? Um palco vazio? Um caos desprovido de direção? Ou a liberdade de sermos nossos próprios narradores?
A ilusão do autor: entre o destino e o acaso
O desejo por um autor transcende culturas e épocas. Os gregos atribuíam os eventos da vida aos caprichos dos deuses; o cristianismo colocou Deus como arquiteto supremo; e mesmo na modernidade secular, buscamos narrativas de progresso, evolução e propósito. O problema surge quando essa busca esbarra na realidade absurda: tragédias atingem os justos, vilões prosperam, e o acaso parece guiar tanto a história coletiva quanto as vidas individuais.
Nietzsche, ao declarar a morte de Deus, não estava apenas criticando a religião, mas apontando para uma crise existencial: sem um autor divino, o ser humano perde sua referência de sentido. O niilismo, segundo ele, é o perigo imediato dessa revelação – uma queda no vazio onde nada mais parece importar. Mas Nietzsche não sugere apenas a destruição desse sentido herdado; ele propõe a superação do niilismo por meio da criação de novos valores. O Übermensch, o “além-homem”, seria aquele que assume essa tarefa com plena consciência da ausência de um roteiro cósmico.
Somos personagens ou narradores?
A questão central não é apenas se há um autor, mas se somos meros personagens passivos ou narradores ativos de nossas próprias histórias. Sartre nos dá uma resposta radical: “A existência precede a essência”. Não nascemos com um propósito pré-definido; somos lançados no mundo e cabe a nós criar o sentido. Mas essa liberdade tem um peso: a angústia.
Sartre chama isso de “má-fé” quando fugimos dessa responsabilidade e nos refugiamos em papéis sociais pré-fabricados – o pai exemplar, o trabalhador dedicado, o patriota fervoroso. Essas identidades nos dão um simulacro de segurança, mas, no fundo, não passam de ficções convenientes. Se aceitamos que não há um autor, então assumir a autoria de nossa própria vida significa romper com essas ilusões e encarar o risco da autenticidade.
O perigo das narrativas falsas
Se somos os narradores de nossas próprias vidas, surge um novo problema: a tendência de criar histórias falsas para nos confortar. A tecnologia e as redes sociais amplificaram esse fenômeno. Construímos versões editadas de nós mesmos, escolhemos quais fragmentos da nossa história mostrar ao mundo, e, muitas vezes, começamos a acreditar nessa versão fabricada.
Nietzsche alertava contra esse tipo de autoengano com o conceito de “ideal ascético” – a tendência de negar a realidade bruta da vida e se apegar a uma narrativa que nos coloca como vítimas, escolhidos ou mártires. Em um mundo onde algoritmos moldam nossa percepção da realidade, essa questão se torna ainda mais urgente: quem está realmente escrevendo nossas histórias? Nós, ou as forças invisíveis que nos influenciam?
Construindo sentido sem um autor
Se o universo não nos dá um roteiro pronto, a alternativa não é o desespero, mas a criação consciente. Aristóteles já sugeria, em sua ética, que o sentido da vida pode ser encontrado na busca da eudaimonia – um florescimento pleno baseado na virtude e na razão. Heidegger, por sua vez, nos lembra que a autenticidade só é possível quando aceitamos nossa finitude e paramos de fugir do nosso próprio ser.
E Camus? Ele nos deixa talvez a resposta mais visceral: se a vida é absurda, que assim seja. Se não há sentido, que criemos o nosso. No mito de Sísifo, ele nos convida a imaginar um homem condenado a empurrar uma rocha eternamente, mas que, ainda assim, encontra alegria no simples ato de existir. “É preciso imaginar Sísifo feliz”, escreve Camus.
Talvez essa seja a chave. Se não há um autor, se não há um roteiro predeterminado, então a tragédia não está na ausência de sentido, mas na recusa de criá-lo. No fim, não somos apenas personagens. Somos narradores – e cabe a nós decidir que tipo de história estamos dispostos a contar.
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