De touca e avental, com os braços apoiados no balcão, dona Dilma observa atenta o vai e vem de pessoas no Polo Cidadela, um dos anexos do Mossoró Cidade Junina, maior festejo junino do RN. À espera dos clientes, ela sorri vendo o povo dançar ao som do forró bem no Dia de São João. As vendas da barraca comandada por ela e suas colegas só se encerrariam dali a três horas. A volta para casa, na comunidade Maísa, a 40 quilômetros de Mossoró, só aconteceria ao raiar do sol. A rotina vivida nos últimos meses foi bem diferente da que dona Dilma e as outras mulheres da Cooperativa dos Produtores da Agrovila Paulo Freire (Agropaf) estavam acostumadas.
Na Maísa, da porta de entrada da casa de Eliene Vicente é possível sentir o cheiro da comida que vem da cozinha e ouvir a conversa da mulherada. Há poucos meses as associadas da Agropaf trocaram as enxadas pelas panelas e começaram a produzir alimentos à base de macaxeira. Cozinhar sempre fez parte das atividades domésticas, o que elas nunca imaginaram é que a cozinha se tornaria uma fonte de renda.
Assim como na maioria das comunidades rurais do Brasil, os moradores da Maísa nasceram e cresceram em meio à agricultura. Apesar da modernidade e tecnologia também terem chegado por lá, as casas ainda preservam muitos traços típicos do interior: a cadeira de balanço no alpendre, panelas de barro e a criação de animais no quintal. Mas o que realmente não mudou com o passar das décadas foi a forma de sobrevivência. A agricultura é uma tradição passada de pai para filho e segue forte na comunidade.
Mesmo que o plantio seja parte da rotina, faz quase um ano que os produtores da Agrovila Paulo Freire sentiram a necessidade de mudar a forma de trabalho. Edilson Rodrigues, presidente da Agropaf, conta que a ideia de criar a cooperativa surgiu quando os produtores quiseram aumentar a produção e os rendimentos.
“Ela foi formada pra gente trabalhar no campo. Trabalhar a produção e ter um bom rendimento na questão das vendas”, explica Edilson, sempre com um sorriso no rosto. O produtor rural ainda diz que o intuito da cooperativa é de buscar o mercado e ter uma maior produção dentro e fora do assentamento.
A cooperativa conta com 21 produtores e está regularizada. Tem o próprio CNPJ e constituição. Essa formalização do negócio só foi possível com a ajuda da Secretaria Municipal de Agricultura de Mossoró e do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) do Rio Grande do Norte. Através do programa Mossoró Rural, o Sebrae conheceu os produtores da Paulo Freire e os ajudou a formalizar a cooperativa.
Franco Marinho Ramos, gestor do Projeto de Fruticultura do Sebrae/RN, explica que o Sebrae tem uma história de longa data com o cooperativismo e o associativismo. Só na região de Mossoró a entidade atuou para formalizar três cooperativas e ajudou a atualizar mais uma. Assim, é necessária uma avaliação criteriosa para saber do que cada grupo de produtores precisa.
“A gente vê se é melhor consultoria, se é a melhor capacitação, palestra. Vai avaliando os grupos, levando o conhecimento, a questão da legislação, obrigações, deveres. Mostra que é uma atividade muito importante e que requer muita responsabilidade, e mostra também que é um instrumento muito forte de comercialização e organização da produção”, diz Franco Marinho, e acrescenta que o Sebrae avalia, observa os interesses e especificidades de cada grupo, levando à capacitação, consultoria e, finalmente, à formalização.
A maior preocupação do Sebrae, no entanto, não é apenas criar a cooperativa, mas fazer com que os agricultores entendam a importância do processo, acreditem no cooperativismo e decidam sozinhos como dar os próximos passos.
Para Edilson, que já estava decidido a mudar a forma de trabalho dos produtores da Agrovila, a escolha não foi difícil. Entre um balanço e outro da cadeira ele conta que, antes das parceiras, a comunidade não tinha muitas informações e a ideia de profissionalizar a agricultura familiar, que abastecia as despensas das casas, não chegava à zona rural. A agricultura é e pode se tornar algo maior.
BROTA UMA NOVA OPORTUNIDADE
Quando a oportunidade apareceu, os agricultores a agarraram. As visitas das equipes do Sebrae na comunidade fizeram a diferença e contribuíram na capacitação. “Eles foram e estão sendo muito importantes nessa área. A gente tem as consultorias no campo junto com o Sebrae e Prefeitura também. Eles vêm a campo, conversam e avaliam o que é que a gente tem e o que se pode melhorar na produção”, diz Edilson.
Foi quando a cooperativa se formalizou que novos caminhos começaram a ser trilhados. Cursos profissionalizantes surgiram, entre eles o de Derivados da Macaxeira. Entre os preparos dos alimentos, Dilma de Miranda e Auricléia de Morais, agricultoras e integrantes da cooperativa, contam que no início o curso realizado pela Prefeitura de Mossoró em conjunto com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) era na verdade destinado para outras pessoas, mas faltou público para ocupar as vagas. Porém, sobrou interesse por parte de Dilma, Auricléia, Eliene e mais outras 17 agricultoras que se dedicaram durante duas semanas a aprender.
A macaxeira, também conhecida como mandioca ou aipim, é uma raiz de fácil cultivo quando irrigada de forma artificial ou pela chuva. O alimento foi escolhido como principal produto para fazer os pratos dos mais diversificados. Aos poucos as receitas tão conhecidas foram aperfeiçoadas: bolo, escondidinho, caldo e coxinha. Mas no mercado a criatividade conta – e muito! No curso, as cooperativistas aprenderam a arriscar e foram um pouco mais além: suco, sorvete, brigadeiro e palmito. Tudo feito a partir da macaxeira.
Assim como quem ouve falar dessa história pela primeira vez, as produtoras rurais estranharam quando a proposta dos diferentes derivados surgiu. Com o tempo, não só aprenderam a saborear os alimentos, mas a prepará-los com maestria. Enquanto separam os ingredientes um por um na mesa e se organizam para fazer o inusitado suco da raiz, as mulheres relembram o passado e falam do futuro. Dona Dilma, que desde os 10 anos trabalha na agricultura, descasca a macaxeira como quem descasca uma banana, tamanha é a habilidade.
Entre os cortes rápidos, ela explica que da raiz nada se perde. Além da parte interior, a casca vira palmito e o que sobra vira ração para as galinhas que rodeiam o quintal ansiosas por um petisco antes da refeição. As mãos de dona Dilma, marcadas pela enxada, são leves enquanto enrolam a coxinha de macaxeira e empanam na farinha de rosca. Os cheiros e sabores se misturam pela cozinha improvisada. A senhora de sorriso fácil e olhos experientes nunca imaginou que um curso fosse capaz de mudar o rumo de sua vida à essa altura.
“Pra mim foi muito importante e pro grupo também. Hoje nós estamos aí tentando ganhar o mercado com nossas produções e estamos pelejando“, afirma dona Dilma, sempre alegre.
DA MAÍSA PARA O MUNDO
Os produtos são novos na comunidade e a demanda no assentamento ainda é pequena. Por enquanto, os alimentos são preparados por encomenda ou para festejos na cidade grande. Neste ano, a cooperativa participou do Mossoró Cidade Junina 2022 que é um evento consolidado no município e chegou à vigésima quinta edição. As agricultoras tiveram a oportunidade de participar da festa pela primeira vez e se sentiram realizadas com as novas descobertas. “É novidade estar nesses eventos vendendo, né? A gente ia antes pra contribuir, mas agora vendendo, pra gente, está sendo de grande importância”, diz Auricléia.
Com um sorriso largo, e entre uma ajeitada e outra no óculos de grau, ela afirma que é fundamental as agricultoras serem inseridas em espaços de comercialização, pois têm a oportunidade de exibir os produtos e conquistar novos clientes. “A gente estava fechado sem ter pra onde mostrar [os produtos]. Esses eventos abrem portas”.
Sair da comunidade e participar de grandes feiras nunca passou pelas cabeças delas. As comidas começaram a fazer parte da vida das cooperativistas e ascenderam nelas o espírito empreendedor. Elas vestiram o avental e passaram a se dedicar a tornar os produtos conhecidos. Diferente do que muitos pensam, até as receitas mais incomuns são gostosas, e é através da curiosidade e do sabor que os clientes são fisgados.
Aos poucos as novas empreendedoras foram pegando as manhas dos negócios. Para acabar com a estranheza, elas oferecem uma amostra para que as pessoas possam experimentar e logo em seguida comprar os produtos. “Tem gente que compra o sorvete e diz assim: sorvete de macaxeira? E a gente responde: sim! Mas aí quando experimenta, já diz pra outro, o outro já vem lá e compra também”, conta Dilma de Miranda.
O curso deu às mulheres da cooperativa independência financeira, mas principalmente, despertou nelas a vontade de crescer no ramo. Sentada numa cadeira no canto da cozinha dela, Eliene Vicente observa as companheiras executarem as receitas. Poucos dias antes ela havia realizado uma cirurgia ortopédica. O pé enfaixado que exigia repouso a impedia de cozinhar naquele momento, mas não de apoiar as outras mulheres. Da cadeira, ela dava dicas para Auricléia e Dilma de como moldar as coxinhas de macaxeira – especialidade dela.
Depois que conheceu o poder e autonomia proporcionados pelo conhecimento, Eliene não se vê mais parada. “Para mim é muito gratificante isso. Depois que apareceu o curso dos derivados da macaxeira, já foi mais uma aprendizagem. Eu aprendi muito e ainda quero aprender muito mais. Me profissionalizar e botar o nosso produto no mercado”.
DE ALUNAS A PROFESSORAS
Ansiosa para retornar ao trabalho, Eliene conta que não vê a hora de se recuperar da cirurgia. Mas enquanto ela descansava, a sua vaga na equipe de cozinheiras não ficou descoberta. Isso porque a filha dela, Laura Lima, assumiu o lugar.
Aos 24 anos, Laura já sabe o que é carregar a responsabilidade de sustentar um lar. A casa dela divide cerca com a dos pais, e assim ficou até mais fácil ajudar a mãe no pós-operatório, e as cooperativistas na cozinha. Na época em que o curso de derivados da macaxeira aconteceu, Laura estava trabalhando e não conseguiu participar. Diferente das mulheres da cooperativa, ela sempre teve gosto por cozinhar. Sua especialidade? Doces. Ao sair do emprego antigo, ela resolveu investir no ramo alimentício. Comprou alguns materiais e começou a vender trufas. O ápice dos negócios veio pouco tempo depois, na páscoa, quando os seus ovos de chocolate ganharam fama na região.
Entre uma passada e outra na casa da mãe, Laura começou a ter contato com os produtos da macaxeira. Vendo o interesse dela, Eliene, Auricléia e Dilma resolveram então ensinar as novas receitas para Laura. De alunas, se tornaram professoras. Cozinheira de mão cheia, a primeira produção dela foi um bolo, que Auricléia faz questão de afirmar que “ficou perfeito e muito gostoso”. Envergonhada com os elogios, Laura dá um sorriso tímido e diz que não é para tanto. Bastou uma semana para aprender todas as receitas e começar a trabalhar com a macaxeira também. Durante a recuperação de Eliene, a filha recebeu oficialmente o avental da mãe e se tornou parte do negócio.
Foi dentro da pequena cozinha da casa de Eliene que Laura descobriu que podia ser grande. O gosto pela culinária fez ela buscar um curso de confeitaria e profissionalizar ainda mais seu trabalho. “Há mais ou menos um mês eu fiz um curso de confeitaria para me especializar mais em bolo de pote e bolo de aniversário. Eu já tinha uma ideia, mas eu queria fazer o curso para me especializar mais, poder divulgar o meu trabalho e assim as pessoas me procurarem”, conta Laura Lima.
Além de melhorar as técnicas na cozinha, a meta de Laura é aprender mais sobre negócios. Ela sabe o quão importante é conhecer a parte administrativa e financeira do seu pequeno negócio para valorizar a mão de obra. “Se você não souber calcular, um centavo que você perder, faz falta. Então além da gente estar se especializando, ganhando conhecimento, a gente também está lucrando com o nosso trabalho”.
Por enquanto as comidas seguem sendo preparadas nas cozinhas das casas de uma ou de outra, e os utensílios usados por elas, como o liquidificador e o moderno processador, são emprestados. Agora todas têm um objetivo em comum: ter um espaço próprio onde todas possam realizar seus sonhos. Quando falam sobre ter um lugar só delas para cozinhar, é possível ver o brilho de esperança nos olhos de cada uma. Encostada na porta de madeira por onde a luz entra na cozinha, Dona Dilma, a mais velha, brinca: “Eita, são muitas coxinhas para levantar essas paredes”. Todas riem e concordam. Mas a frase não serve de desincentivo, muito pelo contrário. O desafio é o que dá gás para elas continuarem persistindo.
Elas dizem que no meio desse caminho esperam encontrar mais ajuda para concretizar esse sonho, e mesmo que ela demore, ou nem venha, não importa quantas macaxeiras precisem ser descascadas, elas vão conseguir. Depois da cooperativa e do curso, pensar no futuro ganhou um sabor mais adocicado para elas.
“As expectativas são aumentar [a produção] e passar para o mercado os nossos produtos, mostrar que nós agricultores também somos capazes de estar no meio da sociedade com produtos naturais, feitos da própria agricultura. E se profissionalizar ainda mais. Esse é o desejo de cada um aqui”, afirma Auricléia.
A cooperativa e as vendas dos alimentos à base de macaxeira são muito recentes, e ainda estão em processo de crescimento. Os cooperativistas entendem que ainda há um longo caminho a ser percorrido, mas como todo bom agricultor, eles sabem que paciência e cuidado são essenciais para o cultivo, seja de um plantio, seja de um sonho. Calejada pelas adversidades da vida, dona Dilma não tem pressa, ela confia no trabalho da cooperativa e principalmente nos alimentos que elas produzem, afinal, é o tempero especial que faz a diferença: o amor.
“Se você fizer com amor e com carinho aquilo ali vai ficar gostoso, né?”, afirma Dilma de Miranda.
TCM Notícia