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O Brasil dos Randolfes

Com a mesma indiferença chapada de muitos alemães diante dos campos de concentração, a sociedade brasileira aceita hoje o estado de coma moral dos primeiros escalões do poder público

Senador Randolfe Rodrigues em pronunciamento no Senado (09/04/2024) | Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Por J. R. GUZZO – 31 de maio de 2024 | Revista Oeste – Edição 219

O senador Randolfe Rodrigues, como todo magnata do Senado Federal, tem uma equipe de assessores pessoais pagos diretamente por você. Acendeu a luz de casa? Falou no celular? Pôs gasolina no tanque? Então: a cada vez que o cidadão faz qualquer coisa dessas, uma parte da quantia paga vai para o bolso do governo, e ali desaparece como um navio fantasma no Triângulo das Bermudas, no tempo em que havia o Triângulo das Bermudas. Com um pedaço da sua cota, por exemplo, o senador paga uma equipe de 80 assessores pessoais, 48 dos quais nem sequer vão a Brasília. Ficam em Macapá, dando uma força quando Randolfe visita o seu Estado, ou em QAP, à escuta para qualquer coisa. É, como em tantas outras despesas, o seu dinheiro sendo jogado fora. Mas no caso do senador há um plus a mais. Pelo menos uma das suas funcionárias, como acaba de se saber, não aparece no escritório — nem no escritório de Macapá. Ganha quase R$ 18 mil por mês do Tesouro Nacional, mas dedica-se à ocupação de influencer de moda, malhação e drenagem linfática no horário em que deveria estar trabalhando.

É um mistério. Como seria possível qualquer senador do mundo precisar de 80 funcionários pessoais, nomeados por ele mesmo, para exercer as suas funções? Não é possível, simplesmente — e aí está o começo, o meio e o fim desta história. A influencer, coitada, talvez nem tenha tanta culpa assim no cartório. Certo, ela não comparece ao local de trabalho, mas pense um pouco: que diabo ela poderia fazer no local de trabalho, se não existe trabalho nenhum para ser feito? Sua função, quando tiveram de dar alguma explicação, é gerir “atividades de mobilização com lideranças políticas locais”. Isso não é nada, claro. Nas explicações constipadas da “unidade de apoio” ao senador em Macapá, tal função é exercida em “regime especial de frequência”, invenção que dispensa os funcionários da necessidade de registrar sua presença por biometria. Entre as “atividades de mobilização”, em tese, está acompanhar o senador em viagens pelo Estado do Amapá, ou ir a reuniões com autoridades estaduais. Na última viagem do senador à cidade de Oiapoque a influencer não foi. Na sua última reunião com um secretário do Estado — bem, aí, não houve nem a reunião.

Luciana Gurgel, Randolfe Rodrigues e Vinícius Gurgel, marido da influencer (13/4/2019) | Foto: Reprodução/Instagram

Na verdade, quando se olha mais de perto a coisa toda, também seria injusto ficar malhando o senador Randolfe. Por que só ele, se está fazendo o que tantos outros fazem? Talvez nem seja o pior — vai saber. O seu único problema, além do ridículo realmente espetacular dessa história, é que foi pego por uma reportagem do UOL e daí todo mundo riu. Está certo que uma antessala com 80 funcionários é coisa para o Livro dos Recordes. Aí não é mais só gabinete de gato gordo da burocracia nacional. É um negócio que já está precisando de RH. Mas o fato é que o senador, se fosse obrigado a fazer uma declaração sincera, talvez dissesse: “Mas o que eu fiz assim de tão errado? Honestamente, não dá para entender. Sim, são 80 funcionários, e daí? Sim, a moça não cumpre horário de trabalho — mas como poderia cumprir, se precisa de tempo para ser influencer? Sim, ela perdeu a última eleição para deputado e eu arrumei um emprego no escritório, mas quem não faz isso no governo Lula? É o procedimento-padrão — quem não tem voto tem cargo”. Em suma: qual é o problema? Esse é o “novo normal”.

O episódio do senador, e quaisquer coisas do mesmo tipo que vierem no futuro, como já vieram no passado, são como a gota de orvalho numa pétala de flor — por um instante brilha, depois de leve oscila, e desaparece do noticiário para não voltar mais. É uma fotografia da banalidade do mal no Brasil de 2024. Com a mesma indiferença chapada de muitos alemães diante dos campos de concentração para judeus, tema de um dos ensaios políticos mais respeitados de nossa época, a sociedade brasileira aceita hoje como uma realidade normal da vida o estado de coma moral dos primeiros escalões do poder público. “Aceitar” não é o verbo correto. Essa degradação cada vez mais avançada dos costumes políticos, na verdade, é imposta aos 200 milhões de brasileiros pelo que eles chamam de “instituições”. Não há instituição nenhuma. O que vale, na prática, é um regime de partido único e de alma soviética que dirige o país unicamente para os interesses do aparelho estatal, do alto Judiciário e dos Randolfes que estão pelos sete cantos — eles, os amigos e os amigos dos amigos.

A filosofia central disso tudo é: “Gasto é vida”. A vida, no caso, é a do alto clero. O gasto serve para os 80 funcionários do senador, os “investimentos sociais” que enriquecem os milionários, as viagens de Janja para conhecer as Pirâmides do Egito, e mais do mesmo.

É 1930 reencarnado em 2024. Não existe povo. Só existe o “Estado” — e o “Estado” são eles mesmos. São os que mandam na máquina pública, não admitem a existência de leis iguais para todos e têm certeza, como os comissários da velha União Soviética, de que a única função prática do Brasil é ser governado por quem tem uma carteirinha de Randolfe. Na verdade, seria uma maravilha se fosse só ele. Mas não é. O soviete brasileiro tem todos os ministros do STF. Tem todos os paxás do governo Lula — ele e mais Janja, os 38 ministros, o ministro plenipotenciário para o Rio Grande do Sul. Tem a influencer de Macapá, elevada à potência nº. Tem os juízes que ganham em média R$ 55 mil por mês e que, segundo o ministro Barroso, precisam de mais dinheiro para não ficarem desanimados e largarem a carreira. Tem o ministro da Inovação, o ministro da Igualdade Racial, o ministro do Desenvolvimento Agrário. Tem umas 500 estatais. Tem banqueiro, empreiteiro de obra, empresário com “pegada social”. Tem “campeão nacional” — desses que vivem na vara de falências e ficam cada vez mais ricos. Tem ladrão que não acaba mais.

Luís Roberto Barroso e outros ministros do STF no lançamento do Anuário da Justiça (22/5/2024) | Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

A Constituição deste regime diz que nenhum dos citados acima tem de prestar contas de nada, nunca. Os que roubam o Tesouro Nacional desfrutam de indulgência plenária por parte do STF — qualquer problema de prova etc. etc., tratar com o ministro Toffoli e citar a jurisprudência da Odebrecht, J&F etc. etc. Está estabelecido, também, que peixe graúdo do governo é juridicamente inimputável — e, mais do que tudo, não é igual aos demais cidadãos. São da categoria premium, que têm direito a estar sempre na sala vip, enquanto o resto espera na fila. “Atividade política”, na visão oficial, consiste em traficar emendas parlamentares do Congresso; é o “orçamento participativo” de que se fala tanto, e do qual só participam eles mesmos. A filosofia central disso tudo é: “Gasto é vida”. A vida, no caso, é a do alto clero. O gasto serve para os 80 funcionários do senador, os “investimentos sociais” que enriquecem os milionários, as viagens de Janja para conhecer as Pirâmides do Egito, e mais do mesmo. É, de resto, o que sobra do pagamento da folha de pessoal, sobretudo do pessoal que ganha de R$ 18 mil para cima — e dos juros da dívida construída dia após dia com o conto do “gasto é vida”.

A influencer do senador Randolfe não é uma anomalia. É um sistema completo de vida para essa gente toda — e ninguém pensa seriamente em mudar nada nesse câncer em metástase. Sua essência, cada vez mais, é o sigilo — tudo, hoje, é segredo de Estado para os que estão nos galhos mais altos do regime. Nada poderia demonstrar isso melhor do que o sigilo de cem anos que Lula impôs, entre outros e tantos delírios, sobre a agenda de Janja. Ou, como acaba de ocorrer, o decreto do procurador-geral da República que transformou em segredo nacional os seus próprios compromissos na função. Como assim? É isto mesmo: proibiu que se diga para onde ele vai, o que já é uma esquisitice master, e também para onde já foi, o que é incompreensível. Motivos de “segurança”? Mas como seria possível colocar em risco a segurança do procurador-geral dizendo onde ele estava ontem, e já não está mais? É o princípio do “nós” estamos acima “deles” — somos da primeira classe, vocês são da segunda e “por via de consequência”, como dizia o ex-governador Aureliano Chaves, podem ir todos para o diabo que os carregue. Outra coisa: é melhor não dizer que há algo de errado nisso tudo. O princípio constitucional que se firma cada vez mais no Brasil de Lula, do STF e da Rede Globo é o de que qualquer crítica a eles e ao ecossistema que prospera à sua volta, sobretudo as mais bem fundamentadas, é uma “articulação de ataques” contra a democracia. Como na Rússia antiga, e também na de hoje, contar o que as nossas altas autoridades fazem é “ameaçar o Estado”. O Estado é o sistema que criaram. O resto é a população que tem a obrigação de obedecer, trabalhar e pagar imposto — e que, segundo Lula, está pagando muito pouco.

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Written by MOSSORÓ NEWS

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