Na maior parte dos municípios brasileiros, o número de beneficiários do Auxílio Brasil, sucessor do Bolsa Família, é superior ao total de empregados com carteira assinada. A situação ocorre, mais precisamente, em 2.892 das 5.570 cidades do país (51,92%), distribuídas em todas as regiões.
O levantamento foi feito pela Gazeta do Povo a partir de dados de março de 2022 do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, e do Auxílio Brasil, do Ministério da Cidadania.
Ao todo, o Brasil tinha um estoque de 41,2 milhões de empregos formais naquele mês, enquanto o total de famílias que recebeu uma parcela do programa de distribuição de renda foi de 18 milhões.
Na quinta-feira (19), o presidente Jair Bolsonaro (PL) sancionou medida provisória aprovada no Congresso que estabelece piso permanente de R$ 400 para o Auxílio Brasil, um de seus principais ativos eleitorais neste ano.
Não é possível fazer a comparação do quadro com o de governos anteriores porque os critérios do benefício, instituído no fim do ano passado, mudaram em relação ao predecessor Bolsa Família. Além disso, a metodologia do Caged também passou por alterações na atual gestão.
Para o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social e fundador do Centro de Políticas Sociais, o quadro revela um desequilíbrio incapaz de se sustentar no longo prazo. “Gerar sua própria renda é mais importante, principalmente em um emprego formal, que tem qualidade e direitos associados. Você tem mais estabilidade do que se fosse informal”, diz.
“Além disso, o emprego formal arrecada recursos que permitem bancar políticas públicas, enquanto o Auxílio Brasil, em si, é um gasto”, acrescenta. “Não só do ponto de vista da sustentabilidade da economia, mas do próprio bem estar das pessoas, gerar a própria renda traz mais satisfação.”
Considerando o total de pessoas que teriam direito ao benefício, o número de municípios nessa situação poderia ser ainda maior, uma vez que, em março, havia uma demanda reprimida de 1,3 milhão de famílias que não receberam o pagamento embora atendessem aos critérios do programa, segundo cálculos do jornal “O Estado de S. Paulo” a partir de estudo da Confederação Nacional de Municípios (CNM).
Têm direito a receber o pagamento famílias em situação de extrema pobreza, ou seja, com renda mensal per capita de até R$ 105, ou de pobreza, que tenham ganhos de até R$ 210 por pessoa. Um trabalhador com carteira assinada pode entrar no Auxílio Brasil, mas, para isso, deve se enquadrar em um desses critérios.
O dado mais recente do Caged apontou saldo positivo de 136 mil empregos formais em março e 615 mil desde o início do ano. Por outro lado, o salário médio de admissão (R$ 1.872,07) teve decréscimo real (isto é, considerada a inflação) de R$ 38,72 em um mês, acumulando redução de R$ 146,54 em um ano.
Para Neri, trata-se do resultado de um cenário de inflação alta com desemprego alto, decorrentes de fatores como a pandemia do novo coronavírus e da guerra na Ucrânia. “Significa que não só é difícil gerar emprego formal, como a qualidade medida por salário, que reflete a produtividade e o bem estar das pessoas, acaba comprometida”, explica.
“O próprio nome ‘auxílio’ denota um pouco essa situação, de que as pessoas estão precisando ser ajudadas e não estão sendo protagonistas da sua própria geração de renda. O grande símbolo da ascensão social no Brasil é o emprego com carteira”, diz o economista.
Uma pesquisa recente do Datafolha indicou que 23% – quase um quarto – da população brasileira vive em domicílios atendidos pelo programa, uma vez que o benefício é pago por família. Em março, o valor médio dos auxílio foi de R$ 409,80.
Beneficiários do Auxílio Brasil são maioria em mais de 80% das cidades do Norte e Nordeste
No mapa dos municípios em que a população mais depende do Auxílio Brasil, Norte e Nordeste se destacam. Em 1.695 das 1.794 cidades nordestinas o número de beneficiários do Auxílio Brasil supera o total de empregados com carteira assinada, o que corresponde a 94,5% dos municípios. No Norte, esse índice é de 83,5%, com 376 das 450 cidades nessa situação.
“Não só são áreas mais pobres e que, portanto, têm mais necessidade de auxílio, como também têm uma outra face, que é onde há muito emprego informal, emprego precário”, diz Neri. “O emprego informal explica parte desse descompasso. Não é que as pessoas não trabalham; muitas vezes elas não ganham o suficiente para sustentar suas famílias”, avalia. Juntas, as regiões Norte e Nordeste concentraram 76,3% dos beneficiários do programa em março.
Na região Sudeste, o total de famílias inscritas no programa supera o número de empregos formais em 533 dos 1.668 municípios (32%). No Centro-Oeste, são 132 das 467 cidades (28,3%). No Sul, 156 de 1.191 (13,1%).
A cidade com o maior desequilíbrio é Palestina (AL), onde 1.072 famílias receberam parcela do Auxílio Brasil em março, enquanto o estoque de carteiras de trabalho assinadas era de apenas quatro no mesmo mês. Localizado a 220 quilômetros de Maceió, o município tem população estimada de 5.061 habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O economista da FGV considera que o país carece de um mecanismo de inserção de beneficiários do programa no mercado formal. “A gente deveria ter uma rampa entre essas duas situações. Falta no Brasil, como esses dados sugerem, fazer essa transição. O movimento do emprego formal não está tendo um bom desempenho, e o Auxílio Brasil acabou de crescer em relação ao Bolsa Família”, diz.
Ele avalia que, em vez de uma “rampa”, o cidadão que pretende fazer essa migração encontra uma “escada”. “Muitas vezes a pessoa prefere estar no Auxílio Brasil do que arriscar buscar um emprego e perder o benefício. É preciso criar incentivos, por exemplo, como uma regra de transição, que já existiu há algum tempo e precisa ser aprimorada: se a pessoa conseguiu emprego com carteira e declarar isso para o Ministério da Cidadania, ela tem um tempo para voltar para o programa se perder o emprego”, exemplifica.
Gazeta do Povo