Dom Pedro deixou o Rio de Janeiro em 14 de agosto de 1822 rumo a São Paulo. Tinha como missão apaziguar os ânimos exaltados de lideranças locais. A situação política do território brasileiro era, de fato, confusa. O Brasil havia sido elevado à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. Mas, desde 1820, com a Revolução Liberal do Porto, e 1821, com a volta de Dom João VI a Portugal, as lideranças lusitanas pressionavam para retomar o controle político e econômico sobre a colônia.
O ano de 1822 já vinha sendo marcado por momentos de tensão. A 9 de janeiro, Dom Pedro se recusou a retornar a Lisboa – foi o chamado Dia do Fico. Em 25 de março, o príncipe havia feito uma viagem às pressas a Minas Gerais, a fim de conter uma tentativa de conquistar a independência da província. A missão foi bem sucedida. Agora chegava a vez de percorrer o caminho até São Paulo.
Acompanhado de uma comitiva de não mais do que 30 homens, Pedro passou por Bananal, depois chegou à Fazenda Pau D’Alho, em São José do Barreiro – onde apostou corrida com os guardas, chegou na frente e bateu palmas na porteira da fazenda do Coronel João Ferreira. Sem se identificar, pediu comida para a proprietária, que não o reconheceu e pediu que ele comesse na cozinha, porque a sala estava sendo preparada para a visita do príncipe.
Passou para Lorena, dali para Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Taubaté e Jacareí – onde não quis usar a balsa que atravessava o Rio Paraíba, passou a cavalo e molhou as calças. Chegando ao outro lado, diante de uma multidão, saiu procurando por alguém disposto a fazer a troca por calças secas. Um jovem chamado Adriano Gomes Vieira topou. O príncipe seguiu para Mogi das Cruzes, dali para Penha de França (hoje parte da capital paulista) e, por fim, alcançou São Paulo no dia 25.
Ali, Dom Pedro dialogou com comitivas que vieram de todo o estado e negociou uma nova eleição para a presidência da Junta Provisória. João Carlos Augusto de Oeynhausen havia sido destituído – era adversário de José Bonifácio. Mas foi novamente eleito, e o príncipe respeitou a decisão dos líderes locais.
O gesto contribuiu para reduzir a tensão. No dia 5 de setembro, ele então seguiu até Santos, com o objetivo de inspecionar as defesas militares do porto e fazer uma visita à família de José Bonifácio de Andrada e Silva, o principal líder político aliado do príncipe naquele momento. A viagem de volta a São Paulo começou uma hora antes do amanhecer do dia 7.
Cólicas e irritação
Depois de atravessar via barco o trecho entre Santos e Cubatão, teve início o percurso a pé. Como aponta o pesquisador Paulo Rezzutti no livro D. Pedro I – A história não contada, “o príncipe não vestia uma farda de gala na ocasião, e sim uma fardeta azul de polícia, sem luxo algum. Trajava calças da mesma cor, botas grandes e envernizadas e um chapéu armado. E ia montado em uma ‘besta baia gateada’”.
Era um animal resistente para suportar a subida da difícil calçada do Lorena, como descreve o jornalista Laurentino Gomes na obra 1808. “Era uma das mais sinuosas e pitorescas estradas do Brasil. Batizada com o nome do capitão general Bernardo José de Lorena, que a mandara construir em 1790 seguindo uma antiga trilha dos padres jesuítas, suportava o incessante tráfego das tropas de mulas que desciam ou subiam a serra com mercadorias do porto de Santos. Tinha oito quilômetros de extensão, três metros de largura e mais de 180 curvas em zigue-zagues debruçadas sobre o precipício. A declividade do terreno era tão íngreme e perigosa que os viajantes levavam pelo menos duas horas para chegar ao topo da serra”.
Para dificultar ainda mais o percurso, Dom Pedro ainda sofria de cólicas intestinais desde o começo do dia. Com frequência, ao longo da viagem, precisou descer da montaria em busca de um canto discreto na mata. Quando chegou aos arredores do riacho do Ipiranga, às 16h30, sua guarda havia seguido à frente para dar a ele privacidade em um desses momentos. Foi quando chegaram ao príncipe cartas com informações urgentes da corte. Foram escritas por sua esposa, a princesa Leopoldina, e por José Bonifácio.
A proclamação
Ambos pressionavam o príncipe a reagir às notícias oficiais que haviam chegado de Lisboa ao Rio de Janeiro, por barco, no dia 28 de agosto. “Eram papéis explosivos”, relata Laurentino Gomes. “Incluíam os decretos em que as cortes constituintes portuguesas na prática destituíam dom Pedro do papel de príncipe regente e o reduziam à condição de mero delegado das autoridades de Lisboa. Suas decisões tomadas até então estavam anuladas. A partir daquele momento, seus ministros seriam nomeados em Portugal e sua autoridade não mais se estenderia a todo o Brasil. Ficaria limitada ao Rio de Janeiro e regiões vizinhas. As demais províncias passariam a se reportar diretamente a Lisboa. As cortes também determinavam a abertura de processo contra todos os brasileiros que houvessem contrariado as ordens do governo português”.
Foi quando o príncipe reagiu. “As cortes me perseguem, chamam-me com desprezo de rapazinho e de brasileiro. Pois verão agora quanto vale o rapazinho”, declarou, fazendo referência a uma expressão utilizada pelo deputado português Borges Carneiro, que também havia chamado Dom Pedro de “desgraçado e miserável rapaz”. O príncipe prosseguiu: “De hoje em diante estão quebradas as nossas relações. Nada mais quero com o governo português e proclamo o Brasil, para sempre, separado de Portugal”.
O tom, irritado e ainda um pouco inseguro, foi ajustado quando o príncipe encontrou sua guarda e deu as notícias. “Amigos, as cortes portuguesas querem mesmo escravizar-nos e perseguem-nos. De hoje em diante, nossas relações estão quebradas. Nenhum laço nos une mais”. Arrancou o laço azul e branco do chapéu, jogou-o no chão e completou: “Laço fora, soldados! Viva a Independência e a liberdade do Brasil”.
Mitos e verdades
O acontecimento, é claro, ganharia novos contornos, mais épicos, ao longo dos anos. Em primeiro lugar, surgiria a lenda a respeito da frase: “Independência ou morte! Estamos separados de Portugal”. Como se lê em 1808, “O famoso grito aparece em outro relato, do alferes Canto e Melo, registrado bem mais tarde, quando o acontecimento já havia entrado para o panteão dos momentos épicos nacionais. A versão do alferes, de tom obviamente militar, mostra um príncipe resoluto e determinado. Por ela, dom Pedro teria lido a correspondência e, ‘após um momento de reflexão’, teria explodido, sem pestanejar: ‘É tempo! Independência ou morte! Estamos separados de Portugal!’”.
Em 1888, o pintor Pedro Américo apresentaria a tela Independência ou Morte, que solidificou o imaginário nacional sobre o grito do Ipiranga. A tela não tinha quase nenhum pé na realidade, nem sequer tinha este objetivo, como aponta Rezzutti em sua obra. “Exceção feita ao retrato de alguns envolvidos e a algo da topografia do local, o restante foi completamente inventado pelo pintor. Não que ele fosse um mentiroso contumaz — muito pelo contrário. Quando se solicitava o retrato histórico de um evento, valia mais o modo de contar a história — que fosse bonita e dignificasse os personagens envolvidos — do que a representação fiel. Na época, a construção de uma identidade nacional raramente era feita mostrando-se a realidade nua e crua dos eventos históricos”.
Tampouco é verdade que o Hino da Independência tivesse sido composto naquela mesma tarde, ensaiado e executado ainda na noite de 7 de setembro, em São Paulo. De fato, a autoria do hino é do próprio Dom Pedro. Ele participou de cerimônias formais na capital paulista ainda na mesma noite. Mas a composição seria elaborada posteriormente.
Por fim, outra lenda a respeito do grito é que o gesto do príncipe teria imediatamente transformado o Brasil em uma nação unificada. Na verdade, o trabalho desenvolvido por Dom Pedro nos meses anteriores à proclamação garantiu a adesão rápida de São Paulo e Minas Gerais. Mas, em outras províncias, principalmente no Norte e no Nordeste, a consolidação do território nacional como um Estado único e de mais de 8 milhões de quilômetros quadrados demoraria alguns anos e seria mercado por uma série de conflitos militares.
Gazeta do Povo